por Franklim Peixinho[1], parceria Instituto Hori, Jornalistas Livres e Ciranda
“Os afoxés, cordões, blocos, escolas de samba, frevos, esses baratos todos que antes eram chamados de “coisa de negros” e por isso mesmo reprimidos hoje fazem parte de um “patrimônio cultural nacional” do qual, é claro, os beneficiários não são os “neguinhos”, mas as secretarias e as empresas de turismo” (Lélia Gonzalez, 1982).
Por que Mariene de Castro, não canta no carnaval de Salvador? Talvez por que “Santo de Casa não faz milagre” ou ainda por estarem às últimas cotas de participação, ocupadas por “outsiders” da branquitude.
O carnaval é um espaço de expressão popular da cultura afrobrasileira, que enfrenta a criminosa apropriação do capital branco. Esta tendência colonial de apropriar-se da cultura dos “subalternizados” não é novidade, aliás, fiz algumas observações sobre tal em “Por que o branco é tão marginal?”.
É sintomático que uma mulher negra, como a cantora soteropolitana Mariene de Castro, esteja fora do carnaval baiano. Elas – mulheres negras – trazem maximizada as opressões interseccionais: capital, raça e gênero.
São elas, por exemplo, que constituem a maioria da força do trabalho ambulante no carnaval. Recentemente foram tratadas na base da cacetada e bomba de gás lacrimogênio pela Guarda Municipal de Salvador, em um mais um processo vergonhoso e escancarado de racismo institucional, que, diga-se de passagem, se repete todo ano.
Assim, as que não são excluídas, são desumanizadas e precarizadas em sua força de trabalho no carnaval.
Racismo institucional contra ambulantes soteropolitanos
O prefeito Bruno Reis, se intitula negro, de acordo com o TSE, tal como o seu mentor, o Acm “Negro”, herdeiro do carlismo na Bahia. Ambos, são homens brancos que se apropriam de uma identidade racial e, descaradamente, alegam se sentirem negros. Por outro lado, pessoas pretas não podem se sentirem brancas para escaparem do racismo: eis mais uma face do “maravilhoso mundo” do privilégio branco.
Trabalhadores e trabalhadoras negras soteropolitanas, que tentavam se cadastrar para o trabalho ambulante no carnaval deste ano, foram tratadas de forma desumana, em filas sem qualquer abrigo contra o sol e chuva. Muitas tiveram que dormir dias nas filas, como seus filhos, para brigar por um espaço de trabalho na folia momesca.
Estamos falando de pessoas pretas, mulheres na sua maioria, periféricas e desempregadas.
A precarização e o destrato do trabalho negro é uma herança escravocrata que se perpetua na administração pública do carnaval soteropolitano, e soma-se ao que o artista preto Jorge Washington fala sobre a gourmetização do carnaval, que se dá com a exclusão da “tia da latinha, da cerveja”, dos trabalhadores negros no período da folia – artistas, ambulantes, catadores…
A indústria branca do carnaval
“As coisas de negros” são um barato, e a sanha exploradora colonial quando enxergou uma oportunidade lucrativa, tratou de se apropriar e criar um mercado para eles… Lucrarem, óbvio.
Uma observação de Lélia Gonzalez que segue atual.
E como se dá esse processo? Por diversas formas. Vejamos algumas:
A Axé Music é um exemplo disso. As vozes negras femininas, principalmente, foram as preteridas no mercado da música baiana, para cantoras brancas, tais como a “nega loira”. A produção cultural negra é base da música baiana, seja nas composições e estrutura percussiva, contudo, há uma preferência por artistas brancos no comando de bandas e blocos de carnaval. Eles definem quem canta, quem toca e apagam a presença negra.
A exclusão racial também se dá em relação ao público consumidor, pois os blocos soteropolitanos na década de 1990, selecionavam racialmente – em um processo velado – pessoas brancas, de modo que dificilmente uma pessoa negra e periférica saía nas agremiações de “gente bonita”*. Isso diminuiu depois de várias denúncias.
Pode-se dizer que semelhantemente há algo com as escolhas de passistas “gringas” nas escolas de samba no eixo Rio/São Paulo, ao invés das mulheres negras da comunidade.
Blocos afros, principalmente os pequenos, são desprestigiados na transmissão das mídias, e perdem espaços para “sertanejos” e demais artistas brancos de outros gêneros, fora do contexto da música baiana.
Estes – os outsiders – garantem a maioria dos patrocínios e exposição nos canais de comunicação, quando da transmissão do carnaval. Os blocos de preto desfilam lá pelas tantas da noite, com parca cobertura da mídia.
Lazzo Matumbi, cantor negro soteropolitano, pergunta se o “Carnaval tá bom pra todo mundo?”. E responde que o Axé Music teve uma intenção excludente, sobretudo com artistas negros.
A par disso, acompanho todo o esforço que blocos afros, como Okànbí – representado por Jorjão Bafafé – realizam para resistentemente trazer a cultura negra para avenida na folia de Salvador, realidade que afeta ainda grandes blocos como Olodum e Ilê Ayê.
Sim, o carnaval é uma explosão da cultura popular negra, mas que segue ameaçada pelo racismo estrutural, portanto não romantizemos com toda sinestesia que vivemos no momento da folia.
Salve Mariene de Castro e a produção artística negra brasileira!
Salve Oxum, a Yabá que a ganha a guerra sem levantar a espada.
“Apesar de tanto dor que nos invade, somos nós a alegria da cidade”.
Os grandes blocos carnavalescos de Salvador exigiam que as pessoas preenchessem uma ficha anexando uma foto 3×4 colorida, com a informação do endereço, para avaliação e aprovação. Pessoas negras e de bairros periféricos não eram aprovadas, até que algumas pessoas negras passaram a informar endereço de bairros não periféricos e alterar a foto para de outra pessoa branca, o que evidenciou a seleção racial velada.
[1] Franklim Peixinho é homem negro, Ogan do Ilê Axé Ikandèlé, professor de História e Direito Penal, advogado antirracista, militante do Círculo Palmarino/Bahia, Dirigente do Instituto Hori. Mestre em Políticas Públicas e em História da África, Diáspora e Povos Indígenas (UFRB), Doutor em Ciências Jurídicas. Pesquisa a necropolítica da guerra às drogas no Brasil e educação antirracista.
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